31 outubro 2010

Pax Romana

Argumento e Arte: Jonathan Hickman
IMAGE COMICS

"Pax Romana, expressão latina para "paz romana", foi o longo período de relativa paz gerada pelas armas e pelo autoritarismo, experimentado pelo Império Romano. Iniciou-se quando Augusto César, em 29 a.C., declarou o fim das guerras civis e durou até o ano da morte de Marco Aurélio, em 180."

Jonathan Hickman é um daqueles autores que chegam ao mundo da banda desenhada de pára-quedas e logo conseguem deixar a sua marca, simplesmente por introduzirem novas variáveis a uma equação que já se julgava resolvida. Quando pensamos que já não há forma qualquer de inovar neste meio que se mostra saturado ano após anos, eis que chegam sempre um ou dois salvadores que prometem limpar a casa e decorá-la de outra forma. Se no século passado tivemos Alan Moore, actualmente podemos dizer que temos o privilégio de viver na mesma época que o autor deste Pax Romana. Mas Hickman não é Moore, nem de perto nem de longe. Julgo até que as comparações que se fazem constantemente entre estes dois autores são forçadas. Do meu ponto de vista, têm apenas um ponto comum, o de terem apresentado abordagens diferentes nas suas obras que definitivamente foram e serão utilizadas como inspiração para as gerações futuras. Nestes termos, a comparação é possível, mas Moore e o seu fluxo de ideias único e condensado magistralmente numa estória construída com pés e cabeças é quase incomparável, ou até impossível de alcançar. Mas Hickman também terá o seu mérito. É talvez o argumentista mais original da década.


Pax Romana é uma estória sobre um grupo de pessoas que decidiram viajar para o passado de modo a reconstruírem toda a civilização. Destruir o passado para criar o futuro, é o repto lançado por esta organização. Devido a ligações à Igreja, até porque a última palavra foi dada pelo próprio Papa regente no ano de 2053 d.C., decidiu-se que a viagem não seria feita até à época anterior ao nascimento de Jesus Cristo, de modo a que se pudesse moldar todo o mundo à volta da religião a partir daí criada. A Igreja actual pretendia, assim, criar um mundo perfeito onde os homens enviados para o passado seriam responsáveis por acelerar os processos de evolução da civilização e assim conseguir em cerca de 400 anos aquilo que demorara cerca de 1000 a construir. De facto, esta abordagem inicial teve os seus frutos e até poderia ter sido chamada de sucesso, mas o grupo seleccionado para viajar ao passado acabaria então por se desagregar e tudo culminaria num novo plano que nada tinha a ver com o original. Se o que se pretendia era utilizar a religião como catalisador para a criação de um novo mundo, o que aconteceu de verdade seria bastante diferente até.
A primeira consideração que fiz sobre esta premissa foi apenas uma questão existencial muito simples - se o Papa sabia que se ocorresse uma viagem ao passado e da qual não poderia haver regresso (devido a uma falha tecnológica), porque haveria ele de consentir um evento que iria destruir todo o Presente, ou seja, acabar com as vidas de toda a humanidade (incluindo a dele)? Se calhar não o tinham informado sobre o que um paradoxo temporal era. Ideologicamente falando, a iniciativa é nobre e seria um meio para que o mundo avançasse mais rapidamente e contrariasse mais facilmente o mal que as mentes mais atentas do mundo temem - o fim da nossa existência. O Sol irá um dia, inevitavelmente, apagar-se para sempre e com ele a Terra e todo o restante Sistema Solar. A conquista espacial iria ser mais ambiciosa e os avanços tecnológicos seriam exponenciais, permitindo que a fuga para o outro lado do espaço pudesse ser algo mais realista. Mas olhando para uma perspectiva mais humana, não entendo como alguém seria capaz de consentir um acto desta natureza, ainda para mais pondo o destino da humanidade nas mãos de um só padre, representante da Igreja, e de um grupo de mercenários violentos que tinham "volátil" como nome do meio. Moralmente, parece-me errado e sendo a Igreja um instituição que presa pela moralidade... Ah não, devo estar enganado. Eles já se deixaram disso há uma data de anos.

Resultado, desde bem cedo que Hickman tenta explorar a natureza humana através da moralidade (ou falta dela) nos homens e o que é facto é que toda a obra, essencialmente, gira em torno disto. Tudo para percebermos que um mundo perfeito nunca será possível devido à co-existência de um exagerado número de culturas que, invariavelmente, não conseguem cooperar entre si de modo a atingir objectivos comuns. O plano original da Igreja neste Pax Romana pouco teve a ver com o resultado final pois, quando se trata da espécie humana, tudo é possível e nada é um dado adquirido. Hickman expôs bem as suas ideias ao nos mostrar que a religião não é mais do que política demagógica. Isto através de um leque de personagens brilhantes marcadas por traços bastante definidos. As páginas que o autor preenche somente com conversas entre os intervenientes (com um design semelhante ao de uma entrevista num jornal ou revista) introduzem uma nova componente na forma de contar uma estória e permitem que os diálogos se expandam, havendo mais espaço para explorar certos aspectos. Em apenas 4 capítulos, Hickman encontrou esta interessante forma de nos oferecer mais informação sobre este maravilhoso universo alternativo. Certo é que mais um ou dois capítulos adicionais até seriam bem vindos. A estória focou-se demasiado nos construtores do plano e pouco nos efeitos produzidos. Um olhar sobre a população da época e as suas reacções aos avanços tecnológicos seria algo interessante de ver. Gostava de os ver a descobrir a electricidade num mundo em que quase ninguém sabia ao certo o que se passava na outra ponta da existência humana. Ou a tal conquista espacial que aqui é pouco aprofundada e deixa apenas água na boca. Mas pelos vistos, Jonathan quer voltar a pisar estas terras e presentear-nos com mais uma série de Pax Romana. Não poderia haver melhor notícia.


No que toca à arte, podemos dizer que Jonathan Hickman não é um desenhador puro. No entanto, é um verdadeiro artista a esconder os seus piores defeitos e limitações a nível gráfico. Hickman é essencialmente um designer. Isso fica demonstrado nas concepções das suas páginas e no modo como interpreta a sua própria estória. O traço é demasiado rígido e pouca varia ao longo do livro. As posições das personagens e as suas emoções são quase sempre as mesmas, mas através de uma utilização interessante de um conjunto restrito de cores conseguiu disfarçar as suas falhas a nível artístico. Do modo que Hickman apresenta esta estória, parece-me impossível que outro artista conseguisse interpretar os seus desejos. Só com um manual de instruções minucioso previamente estudado.

De tudo o que li esta década, este é provavelmente o livro que mais me marcou positivamente. Só tenho pena de não o ter lido mais cedo, mas nunca é tarde para ler uma boa obra. A nível de argumento, é quase tudo perfeito. O nível de detalhe é impressionante e é quase impossível detectar uma falha cronológica ou um erro de continuidade em Pax Romana. Mas volto a dizer, que não está aqui um Alan Moore. O desenho funciona mais como ilustração do que propriamente como uma sequência gráfica narrativa, portanto não esperem que esteja aqui escondido um Picasso. Seguir-se-ão agora The Nightly News e Transhuman, ambos deste magnífico autor.

Nota: 5/5

3 comentários:

  1. Já tinha ouvido falar muito sobre a originalidade de Pax Romana. Está em "wishlist" é uma verdadeira candidata a ir parar a uma prateleira de minha casa...
    :)
    Alan Moore foi grande, mas não o considero como o absoluto melhor! Em determinado tipo de registo é sem dúvida o melhor, mas a BD assim como a literatura em geral é composta de vários tipos e géneros de registo e um autor muito bom em "romance" com certeza o não será em "terror"... isto exagerando para dois tipos opostos de géneros.

    Abraço

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  2. Percebo perfeitamente o que dizes e de certo modo até concordo. Em todas a artes é difícil escolher um supro-sumo sem esbarrar no gosto pessoal. É como comparar um Pavaroti aos Pearl Jam.

    Portanto dificilmente se encontra um mestre supremo da banda desenhada, mas ainda assim acho que, dentro da BD Americana, o Alan Moore foi a melhor coisa que nasceu.

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  3. Tambem esta na minha "wishlist",mas acabo sempre por ficar esquecida.
    Mas tenho muita curiosidade sobre essa mini.

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